Este álbum de Paulo Gonzo, o mesmo homem que colecciona êxitos em Português e que nunca abdicou de mostrar como é incondicional do soul e dos blues (basta apanhar as pérolas espalhadas ao longo do currículo de gravações ou concentrarmo-nos no irrepreensível disco By Request), vale como um autêntico menu de degustação.
Passe a expressão e fique a ideia, porque não há exageros nem repetições, porque a cadência é de surpresas consecutivas, porque os sabores ganham as asas dos melhores contrastes, porque a única lógica é a da qualidade e a única lei é a da diferença, percorrida canção a canção. Não se pense, no entanto, que o homem que serve de interface às canções e aos contornos deste disco sempre cozinhado em equilíbrios de risco se encosta a qualquer espécie de exibicionismo ou de desleixo. É precisamente o contrário que ocorre, quando Paulo Gonzo é chamado pelos talentos daqueles que sabia e instintivamente convocou a respostas absolutamente distintas entre si. Sem nunca se afastar da sua própria alma de conhecedor curioso e de descobridor destemido.
Façam o favor de seguir as propostas à la carte. Tudo começa com um crooning de sonho, que parecia estar guardado para as vozes do anfitrião e da espantosa Ana Carolina, brasileira universal. É verdade que o original do tema até é italiano, que Ana Carolina a chamou ao Português há mais de uma dezena de anos, mas a convergência de dois privilegiados para uma história de adeus (será mesmo?) dá ao enredo uma nova dimensão. Logo a seguir entra em cena Anselmo Ralph, representante maior do balanço sedutor e da doce “malandrice” angolana – a passadeira estendida ao português é aproveitada para outro exemplo da multiplicidade de paixões de Paulo Gonzo. Vem depois um encontro de mestres, chamado Jorge Palma para um contraponto que, aos primeiros versos, já é um clássico. Vale a pena lembrar que este Só já passou pela voz de Gonzo, há mais de quinze anos (Voz e Guitarra, 1997) mas só agora cria espaço para a presença do autor. Com a andaluza India Martínez, a conversa é outra, com flamenco e salero em fundo, com uma vibração que não se confunde. Quando cabe ao italiano Mário Biondi assegurar a sua réplica a Gonzo, podíamos estar a ouvir a resposta de Barry White a Ray Charles – não é dizer pouco sobre as alturas alcançadas no dueto que é uma das chaves de todo o álbum.
Sem darmos por isso, que as boas novas não se cronometram, já foi desbravada quase metade deste disco. Ficou dado o mote: um tempero para cada compasso, um perfume para cada diálogo, uma dimensão para cada guião. Sem problemas, deixamo-nos guiar até à América Latina, para que o mexicano Carlos Rivera recupere, mano a mano, o êxito que é Fascinación. A passada africana está de volta, outra vez com Angola (e Matias Damásio), mais adiante com Cabo Verde (e esse viajante de tantos mares que é Tito Paris). Mas não se dispensa o slow assolapado, Talk To Me Instead, capaz de convocar uma gloriosa desconhecida, mas só até agora – Tammy Payne. Ainda se descobre um lugar especial para que Fafá de Belém venha derramar mais-valias sobre Vais Entender, que Paulo Gonzo deixa à solta para uma versão em que se percebe que, entre o melhor de Portugal e do Brasil, não há mesmo longe nem distância. Se é possível falar de despedidas num registo em que a boa tentação é voltar ao princípio, baralhar e deixar correr o shuffle do iPod, o tom é o certo, quando Rui Reininho assina a versão feliz de These Foolish Things e o saudoso Bernardo Sassetti passeia pelo piano, em fundo ou bem à vista. Faz-se justiça, dentro da multiplicação dos gostos.
Paulo Gonzo é, desta vez, o cicerone que tem espaço para caminhar em todas as direcções, nunca cedendo aos sentidos obrigatórios. Não precisa de ser o “macho alfa” de uma alcateia de notáveis cantores porque lhe cabe, naturalmente, a condução dos acontecimentos. Não cansa, ouvi-lo. Nem nos cansamos de abraçar, com o aplauso, com a emoção, com a fidelidade que merecem os que mantêm a luz acesa, cada um dos passos deste cantor que, tantos anos e tantas cantigas depois, ainda nos arrebata e comove e convence. Volto quase ao princípio: mais vale sê-lo que parecê-lo. Paulo Gonzo é – e não está só, como fica demonstrado. ~João Gobern, Novembro 2013
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